Fundamentalismo gera trauma religioso - Sementes das Estrelas

Fundamentalismo gera trauma religioso

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Marlene
Winell, norte-americana, é psicóloga, educadora e escritora, com 28 anos de
experiência tanto em atendimentos clínicos, quanto na área acadêmica. Doutora
em Desenvolvimento Humano e Estudos da Família da Universidade Estadual da
Pensilvânia, nos Estados Unidos, é a autora do livro Leaving the Fold: A
Guide for Former Fundamentalists and Others Leaving their Religion, ainda sem
edição em português. Trata-se de um guia sobre como identificar e se livrar de
problemas desencadeados por religiões fundamentalistas. Marlene cunhou o termo
Síndrome do Trauma Religioso para classificar os sintomas de pacientes que
sofrem de transtornos mentais em decorrência da doutrinação dessas crenças.
Para ela, religião é algo que não deve ser ensinado para crianças e o fundamentalismo
rouba a identidade das pessoas.

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Extra Classe: O que é a Síndrome do
Trauma Religioso e como você desenvolveu sua teoria?

Marlene Winell: É a condição vivida
por pessoas que estão lutando para sair de uma religião autoritária, dogmática
e sofrendo os danos dessa doutrinação. Eles podem estar passando por um momento
de quebra de conceitos e de paradigmas pessoais ou rompendo com uma comunidade
ou estilo de vida controlador. Os sintomas dessa síndrome podem ser mais
facilmente comparados com o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que resulta
da experiência de ser confrontado com a morte ou lesões graves que provocam
sentimentos de terror e impotência. Como no Transtorno de Estresse
Pós-Traumático, o impacto da Síndrome do Trauma Religioso é de longa duração,
com pensamentos intrusivos, estados emocionais negativos, convivência social
deficiente e outros problemas.

Eu mesma sofri com isso por algum tempo. Foi quando comecei a escrever sobre
minha recuperação de uma religião cristã fundamentalista, que me dei conta que
não estava sozinha. Muitas pessoas também estavam ansiosas para falar de seu
sofrimento. Desde então, tenho trabalhado com clientes na área de “recuperação
da religião” e escrevi um livro. Meus estudos têm como base resultados clínicos
de 20 anos de atendimento psicológico.


EC: Como a Síndrome do Trauma Religioso
pode ser reconhecida em uma pessoa?



Marlene: A Síndrome do Trauma
Religioso é vivida de diferentes maneiras e depende de uma variedade de
fatores. Alguns sintomas-chave são confusão mental, dificuldade em tomar
decisões e pensar por si mesmo, falta de sentido ou direção na vida, baixa
autoestima, ansiedade de estar no mundo, ataques de pânico, medo da condenação,
depressão, pensamentos suicidas, distúrbios do sono e alimentares, abuso de
substâncias, pesadelos, perfeccionismo, desconforto com a sexualidade, imagem
corporal negativa, problemas de controle de impulso, dificuldade de desfrutar o
prazer ou estar presente aqui e agora, raiva, amargura, traição, culpa, sofrimento
e perda, dificuldade em expressar emoções, ruptura da rede familiar e social,
solidão, problemas relacionados com a sociedade e questões de relacionamento
pessoal.

Os sintomas podem variar de acordo com os ensinamentos e práticas específicas
de determinadas igrejas, pastores ou dos pais. As pessoas mais sensíveis à
síndrome são aquelas que foram criadas dentro de uma determinada religião,
protegidas do resto do mundo ou de uma religião muito controladora. A Síndrome
do Trauma Religioso é uma realidade. Embora possa ser mais fácil de entender os
danos causados por um abuso sexual ou um desastre natural, as práticas
religiosas podem ser tão prejudiciais quanto esses traumas. Mais e mais pessoas
precisam de ajuda e o tabu sobre criticar as religiões precisa ser questionado.

Foto: Igor Sperotto | Extra Classe nº 178, de Outubro de 2013
Foto: Igor Sperotto

EC: Como é o tratamento? É possível
comparar com a recuperação da dependência de drogas?


Marlene: Essa é uma questão muito
profunda e eu estou no processo de escrever e fazer pesquisas sobre as melhores
práticas. Há alguma semelhança com o vício de drogas no sentido em que as
pessoas tentam encontrar formas de evitar a responsabilidade por suas vidas, e
a recuperação é difícil porque requer que você enfrente este problema. No
entanto, eu prefiro comparar com o Transtorno de Estresse Pós-Traumático,
especialmente se a doutrinação ocorreu na primeira infância. O medo do inferno
incutido nas crianças, por exemplo, pode criar um trauma de longa duração.

EC: Como as vítimas do fundamentalismo
religioso podem se reconhecer e, depois disso, o que devem fazer?




Marlene: Esta é uma pergunta
difícil, porque é como uma esposa maltratada reconhecer que é vítima de
violência doméstica e se separar. Em ambos os casos, a vítima sente que a culpa
é sua pelos problemas e tende a insistir para permanecer na situação. Essas
pessoas normalmente também têm pouco conhecimento de outras opções de vida. Por
isso, a melhor maneira de começar é se informar. Não tenha medo de questionar o
que lhe foi ensinado ou descobrir o que outras pessoas podem fazer para
ajudá-lo.


EC: Você diz que quem
“sair do rebanho” geralmente perde a identidade individual e tem problemas de
autoestima. Por quê?


Marlene: Na verdade, a pessoa
passa por um período de confusão sobre isso porque ela foi ensinada a formar
sua identidade pessoal afim de identificar-se com Deus e considerar apenas Deus
como algo bom e valioso. Normalmente, eles acreditam que são pecadores desde o
nascimento e precisam ser salvos, portanto, não veem nenhum valor além da graça
de Deus. Quando deixam sua fé e suas crenças precisam reconstruir a autoestima
e senso de identidade. Eu não diria que eles perdem a identidade quando deixam
sua fé, pelo contrário, a religião já roubou sua identidade e outros aspectos
do seu desenvolvimento pessoal. Então, quando eles saem, eles têm muito
trabalho para descobrir quem são, aprender o amor próprio, autocuidado e
autoconfiança, tudo que era considerado pecado e orgulho, de acordo com suas
religiões.

EC: Quando (ou como) a espiritualidade e
a religiosidade podem ser identificadas como práticas saudáveis?


Marlene: Grupos que reúnem
pessoas e promovem o autoconhecimento e crescimento pessoal podem ser
considerados saudáveis. Esses grupos colocam alto valor no respeito às
diferenças e os membros se sentem empoderados como indivíduos. Eles oferecem
apoio social, lugar para eventos e ritos de passagem, troca de ideias,
inspiração, oportunidades de serviço e conexão com as causas sociais. Eles
incentivam as práticas espirituais que promovem a saúde, como a meditação ou
princípios para viver como regra de ouro.

EC: Se um grupo ou religião provoca um
trauma em indivíduos, não seria este grupo também uma vítima de trauma ou
síndrome coletiva? Como lidar com esses casos?


Marlene: Sim, o trauma religioso
é transmitido e na mesma maneira que os outros tipos de abuso, tende a ser
repetido. A religião tem sido chamada de um vírus, como diz o livro The
God Virus (O vírus de Deus), de Darrel W. Ray. As pessoas só precisam
quebrar essa cadeia e parar de repassá-lo.

EC: No Brasil temos um grande número de
escolas confessionais. Como essas escolas devem lidar com os dogmas religiosos?


Marlene: Minha opinião é que a
religião não deve ser ensinada às crianças.

EC: O que você diria para os pais que
têm de escolher as escolas para os seus filhos? O que eles devem prestar
atenção sobre os aspectos da religião?


Marlene: Evite escolas que
ensinam religião, se possível. Se isso não for possível, visite as salas de
aula para saber o que estão ensinando para seu filho. Discuta isso com
frequência com seu filho em casa, para que ele saiba que nem todo mundo pensa
assim, que existem outros pontos de vista, incluindo outras filosofias e
religiões. Pergunte ao seu filho o que ele pensa e incentive o pensamento
crítico, escutando o que ele tem a dizer. Todas essas coisas vão mitigar o
impacto da doutrinação da escola. Além disso, não tenha medo de falar com os professores
e administradores da escola sobre suas opiniões.

EC: O pensamento fundamentalista só pode
ser encontrado na religião?


Marlene: Se você quer dizer
pensamento dogmático, autoritário ou preto e branco, então é claro, você pode
encontrá-lo em muitos lugares.


Foto: Arquivo pessoal | Extra Classe nº 178, de Outubro de 2013
Foto: Arquivo pessoal
EC: Qual é a sua opinião
sobre a seguinte situação: uma pessoa que viveu muitos anos sem uma religião e,
por vezes, também sem a presença da fé na vida, e então descobre Deus em uma
religião e se sente bem sobre isso?
 


Marlene: Há uma vasta literatura
psicológica e biológica sobre a conversão. A questão não é saber se a pessoa
passou por uma mudança ou está se sentindo bem, mas sim, a interpretação do que
realmente aconteceu. No meu trabalho, eu não tento dissuadir as pessoas de sua
fé se elas estão satisfeitas. Meus clientes são pessoas que já decidiram que
sua religião não está lhes fazendo bem e precisam de ajuda. Ao mesmo tempo, eu
não acho que as pessoas religiosas são sempre inofensivas, pois elas podem ser
muito duras e críticas porque elas não necessariamente mantêm suas crenças para
si mesmas. Por isso, apenas se sentir bem não é bom o sufi ciente, na minha
opinião.

EC: Você acredita que as pessoas
estão procurando mais a Deus hoje em dia do que em outros tempos? Por quê?


Marlene: Não, de forma alguma.
Eu sei que há crescimento de algumas igrejas em alguns países, mas nos Estados
Unidos o grupo populacional que mais cresce é o de não crentes.

EC: Como é a sua
espiritualidade agora? Você acredita em Deus?




Marlene: Para ser honesta, eu
não gosto dessa pergunta, porque pressupõe que sabemos o que essas palavras
significam. Além disso, vou mudar o enfoque e abordar o tema da
espiritualidade, que eu acredito que tem múltiplas dimensões. Qual Deus? Você
quer dizer Zeus, Baal, Athena, Shiva, Alá, Jeová, ou algum outro? Se você quer
dizer um desses, então não. Eu não sou teísta. Eu não acredito em um ser
individual que criou e agora controla o mundo. Porém, apesar de eu ter que
dizer que não acredito em Deus e sou ateísta na real definição da palavra, eu
obviamente me sinto compelida a questionar a linguagem utilizada para descrever
minha experiência. É um pouco defensivo e isso se deve ao estereótipo de que
ateus são frios, rasos, hedonistas e egoístas, que deve ser mudado. Na minha
opinião, o que importa é como vivemos e não em que acreditamos.

EC: Qual sua opinião sobre grupos
políticos que agem como seitas, em que as pessoas têm de seguir regras impostas
pelos seus líderes?


Marlene: Qualquer grupo humano
pode ser dogmático e autoritário. Exigir submissão e o cumprimento de
“fundamentos”. Não é saudável e limita o desenvolvimento. Grupos de qualquer
espécie podem ter práticas em forma de ritual, e se você procurar a definição
da palavra ritual, vai ver que tem muito mais a ver com algo sequencial do que
com uma categoria clara de algo. No meu caso, eu trabalho com pessoas em
recuperação de religião, e existem algumas características especiais, tais como
preocupações sobre a vida após a morte e medos relacionados a isso, em que são
manipulados.


Experiência
pessoal
“Perder
tudo o que antes fazia sentido na vida sem ter nada para colocar no lugar pode
criar um abismo na vida da pessoa”

Essa é uma das descrições de Marlene em seu
livro sobre o sentimento das pessoas que entram em conflito com suas crenças
religiosas. E esta também é sua história pessoal. No segundo capítulo do livro,
ela conta sua trajetória desde a infância, oriunda de uma família de
missionários cristãos. “A visão cristã do mundo era a única coisa que eu
conhecia”, afirma ela. Quando voltou aos Estados Unidos, na adolescência,
começou a frequentar a Assembleia de Deus e chegou a escrever um artigo, no
final do ensino fundamental, defendendo que dançar era algo errado. Mas foi no
ensino médio e faculdade que começou a questionar suas crenças, estudar
culturas e descobriu outras formas de ver o mundo. Dançou escondido, namorou,
casou, separou e casou de novo, sempre na luta contra seu sentimento de culpa e
de estar em pecado. E passou por todas as etapas de “recuperação” descritas por
ela no livro: separação, confusão, negação, sentimento e reconstrução, até “recuperar
o senso de si mesma e descobrir quem realmente é ”.
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